Procurador-Geral de Contas do RJ: o governo do estado desrespeitou, em 2016, normas relativas à saúde, à educação e à pesquisa

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Em meio a uma crise, sem precedentes, por unanimidade, os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ), na terça-feira, (30/05), acompanharam o voto da relatora Marianna Willeman, que seguiu o parecer do Ministério Público de Contas do RJ (MPC/RJ), pela irregularidade das contas do governo, no exercício de 2016. Sobre o fato e sobre aspectos da atuação do MPC/RJ, o Procurador-Geral de Contas do RJ, Sergio Paulo Teixeira, falou para o site do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC). Confira:

Quais as principais irregularidades que levaram o senhor a opinar pela rejeição das contas do governo do RJ, em 2016?

Sergio Paulo: O Governo do Estado do Rio de Janeiro desrespeitou, no exercício de 2016, normas legais e constitucionais relativas à saúde, à educação e à pesquisa científica e tecnológica. Funções centrais do governo e que possuem um impacto social da maior relevância. Foram quatro as irregularidades identificadas pelo Ministério Público de Contas e acolhidas integralmente pelo Plenário do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ). A primeira, o descumprimento do limite mínimo de 12% das receitas de impostos e transferências de impostos, estabelecido no art. 6º da Lei Complementar Federal n° 141/12 c/c o art. 198, II, §2º, da Constituição da República, para aplicação em ações e serviços públicos de saúde. O Governo estadual destinou a esse fim o percentual de 10,42%. Isso significa que R$ 574.932.738 deixaram de chegar à população fluminense sob a forma de serviços de saúde. A segunda irregularidade foi a movimentação de recursos para saúde fora do Fundo Estadual de Saúde. A prática, além de violar frontalmente o disposto nos artigos 2º, 14 e 16 da Lei Complementar Federal nº 141/12, impedindo que tais valores sejam computados como despesas em ações e serviços públicos de saúde, produz grandes dificuldades no controle da legal, legítima e econômica aplicação do dinheiro público em saúde, militando contra a transparência na gestão dos recursos públicos. A terceira irregularidade foi o repasse a menor para o FUNDEB. Restaram transferir, no exercício de 2016, quase R$ 1 bilhão. A conduta do governo estadual viola a norma prevista no art. 3º da Lei Federal nº 11.494/07, representa um menoscabo ao direito fundamental social à educação, constante do caput do art. 6º e detalhado nos artigos 205 a 214 da CRFB, bem como desrespeita o próprio princípio federativo (artigo 1º da CRFB), ao fazer com que montante expressivo de recursos públicos deixe de chegar aos municípios, via FUNDEB. Como se vê, as normas jurídicas aviltadas pelo governo do estado encontram fundamento direto na dignidade da pessoa humana. Um governo não pode desrespeitar esse postulado central de nosso estado democrático de direito sem ter suas contas reprovadas e sem que os culpados sejam devidamente responsabilizados.

Essa é a primeira vez que o TCE/RJ julgou irregularidades nas contas de governo? O Tribunal existe desde quando?

Sergio Paulo: A jurisdição do TCE/RJ tal como hoje é delineada foi estabelecida a partir da fusão do antigo estado do Rio de Janeiro com o estado da Guanabara. O julgamento da terça-feira, dia 30 de maio, é histórico. Antes disso, apenas ao apreciar as contas de governo do exercício de 2002, o Tribunal de Contas do Estado emitiu parecer prévio contrário à respectiva aprovação.

O CNPGC elaborou em 2016 um Relatório Nacional, intitulado “Conhecendo o Ministério Público de Contas Brasileiro”, que traz dados alarmantes. Apesar de contar com 20 cargos, o MPC/RJ só possuía cinco deles providos, demonstrando enorme evasão. O Procurador-Geral de Contas não era concursado para a carreira, admitido antes da Constituição e nomeado para chefiar a instituição desde 2005. A estrutura de trabalho era uma das piores do país. Cada Procurador trabalhava com o apoio de apenas um servidor, produzindo mais de 40 mil pareceres ao ano. O senhor pode explicar como a situação do MPC/RJ chegou a esse caos?

Sergio Paulo: O Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro sofreu um processo de “esmagamento” durante a administração anterior do Tribunal (seis últimos anos). Mas resistiu como instituição. Não havia a compreensão de que não há um controle externo eficiente e efetivo sem um Ministério Público institucionalmente forte. Muito pelo contrário! A situação a que chegou o MPC/RJ, todavia, deve nos servir de alerta: não é possível garantir a independência funcional dos procuradores do Parquet de Contas, como preconiza a Constituição da República, mantendo-se o grau atual de dependência administrativa e financeira da Corte de Contas junto a qual oficiam. E o caso do Estado do Rio de Janeiro não foi isolado, há várias outras situações como essa que ocorreram e ainda ocorrem no Brasil. É preciso que, com a máxima urgência, o Supremo Tribunal Federal revisite a questão e reveja seu posicionamento, assegurando ao MPC uma fisionomia administrativa e financeira que, efetivamente, resguarde a independência funcional de seus membros.

A população do RJ pode ter esperanças de que a situação do MPC/RJ irá melhorar? O que precisa ser feito? O Estado pode realizar concurso para prover as vagas que existem?

Sergio Paulo: A situação atual do MPC/RJ já apresenta melhoras importantes em relação ao quadro desalentador que existia. E me parece que o julgamento das contas de governo dá provas disso. Desde março deste ano, o órgão conta com um procurador concursado na chefia da instituição, nomeado pelo governador do Estado para um mandato de dois anos, a partir de uma lista elaborada pelos integrantes da carreira, tal como estabelecido na Constituição da República. A mudança na administração do TCE/RJ, a partir de 2017, também ajudou na transformação do quadro então existente. Atualmente, a visão, o apoio e as medidas concretizadas pela Conselheira Marianna Montebello Willeman, presidente interina do TCE/RJ, egressa do Ministério Público de Contas, têm sido essenciais para esse processo de reconstrução do Parquet de Contas no Estado do Rio de Janeiro. Hoje, os órgãos de administração do MPC/RJ contam com estrutura de gabinete e os procuradores possuem uma assessoria própria para auxiliá-los no exercício de suas funções. Há também em curso estudos para implementação, no curto prazo, de medidas voltadas para racionalização do trâmite de processos no MPC, a fim de que os órgãos de execução possam se concentrar naqueles casos que demandam uma atuação ministerial imediata e que representam maior risco à higidez do patrimônio público e à concretização dos direitos fundamentais sociais. O número atual de procuradores, contudo, é insuficiente para os grandes desafios que se colocam diante do MPC/RJ. A realização de um concurso para prover, pelo menos, parte das vagas existentes seria uma medida muito importante nesse processo de construção do Parquet de Contas fluminense. O cenário estadual de profunda crise financeira, contudo, tem se revelado um obstáculo imenso a ser transposto para realização dessa importante medida.

O que o senhor pensa sobre a necessidade de dotar o MPC brasileiro de plena autonomia?

Sergio Paulo: Considero que não há como garantir a independência funcional dos membros do Ministério Público de Contas, com o alcance estabelecido na Constituição da República, apenas a partir do reconhecimento de um regime jurídico subjetivo próprio dos promotores e procuradores do Parquet Geral. Sem a existência de garantias objetivas, nomeadamente ligadas à autonomia administrativa e financeira, não há como ser materializado o desiderato constitucional relativo ao Ministério Público, incluindo-se aí o Ministério Público de Contas.

Qual sua expectativa em relação ao Congresso Nacional em promover mudanças no sistema de controle externo? Quais seriam as principais?

Sergio Paulo: Penso que a revisão da forma de composição dos tribunais de contas, com maior representação das carreiras técnicas no corpo deliberativo (procuradores do Ministério Público de Contas, conselheiros substitutos e auditores do tribunal), tal como é a ideia da PEC 329, é uma medida muito importante, necessária. Mas creio que não seja suficiente. É preciso ir além disso. É preciso repensar o sistema tribunal de contas estruturalmente, voltando-se para seu funcionamento e eficiência, e não apenas a partir da forma de composição plenária. A autonomia do Ministério Público de Contas, o estabelecimento de normas gerais para o processo de contas, a garantia normativa da autonomia funcional dos auditores do tribunal e a previsão de novas competências que assegurem uma maior eficiência e efetividade da jurisdição de contas são algumas questões que, em meu entendimento, precisam ser, com a maior brevidade, mais refletidas e aprofundadas. Todas essas medidas, porém, dependem da atuação do Congresso Nacional, haja vista a importância do delineamento de um modelo nacional à semelhança do que ocorre em relação ao Judiciário e ao Ministério Público.

Para finalizar, o senhor é otimista para com o futuro do estado do RJ, do MP de Contas e do Tribunal de Contas estadual?

Sergio Paulo: No atual cenário, que pode ser chamado de crise, de crise fiscal, de ruína financeira do estado, para alguns (em inovação circunstancial e conveniente), até de calamidade pública financeira, assegurar a qualidade do gasto público e concretizar um controle eficaz e eficiente sobre a atuação dos servidores públicos e agentes políticos na gestão dos recursos públicos mostra-se como pressuposto necessário para afastar os ciclos viciosos – de deficiência técnica, de má-gestão, de falta de governança e de corrupção – que realimentam a própria crise. Uma crise que não é somente financeira, mas também social e moral. O Ministério Público e o Tribunal de Contas, especialmente no cenário delineado, têm o dever de contribuir com sua atuação técnica e independente. Mas não podem, contudo, contentar-se com a mera aferição, quase cartesiana, da conformidade legal dos atos de gestão e de realização da despesa pública por parte daqueles que têm acesso aos bens, dinheiros e valores públicos. Devem, tanto o Ministério Público como o Tribunal de Contas, prestar sua contribuição para reverter uma trajetória de insustentabilidade financeira e de sacrifício dos direitos sociais, a qual penaliza sobretudo os excluídos, os mais pobres, que são os que mais precisam de uma aplicação eficiente dos recursos públicos. Além de sacrificar o presente, essa trajetória compromete nossos deveres para com as futuras gerações. Essa mudança exige dos atores envolvidos no controle externo a consciência de que todos, como servidores públicos que somos, estamos continuamente a prestar contas ao verdadeiro destinatário dos recursos públicos, a verdadeira autoridade: o povo do Estado do Rio de Janeiro. Devemos, cada um no âmbito de nossas atribuições constitucionais e legais, empenhar todos os esforços para assegurar que cada centavo do dinheiro público chegue, sob a forma de serviços públicos eficientemente prestados, aos cidadãos do Estado do Rio de Janeiro, sem perdas, sem desvios, sem malversações. Embora o cenário seja desolador, confio nas instituições, mas sobretudo na força do povo do Estado do Rio de Janeiro que, ao longo de sua história, tem dado constantes demonstrações de sua incansável capacidade de superar obstáculos e condições adversas para se erguer e se reconstruir.

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