Terceirização, corrupção e precarização de direitos do trabalhador

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Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira,

Procuradora-Geral do MPC/DF e Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC).

            Convidado a participar do Simpósio Terceirização, Corrupção e Precarização dos Direitos do Trabalhador, coube ao CNPGC (Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Contas), representado por sua presidente, fazer algumas breves considerações, na solenidade de abertura do evento, que são, agora, reproduzidas, em forma de texto, a fim de registrar, em breves linhas, as reflexões feitas naquela assentada.

            O tema está na pauta de nossas discussões. Em tempos de crise financeira, fiscal e de cortes, nunca foi tão importante debater questões essenciais, como a garantia do pleno emprego e da realização dos direitos sociais. E, nesse campo, a união de todos os ramos do Ministério Público é essencial.

            Nessa toada, o CNPGC representa mais uma possibilidade que se abre em defesa das parcerias que devem existir entre todos os membros do Ministério Público brasileiro, no enfrentamento dessas e de todas as questões relevantes para a nossa República. Isso porque, o Conselho, em seu ambiente coletivo, está voltado à difusão de ideias e de boas práticas, que podem e devem ter um efeito multiplicador em toda a nossa federação.

            Para narrar como essa atuação concertada pode ser útil, nesse campo, citou-se um exemplo (mas há, felizmente, vários outros, na Capital), o qual reflete a atuação coesa ministerial e tempestiva, em respeito a Constituição Federal.

            Há alguns meses,o MPC/DF, ao analisar o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2017, no DF, deparou-se com alguns dispositivos que invadiam a competência da União e provocavam indevida contabilização de gastos de pessoal e precarização das relações de trabalho. Votado, converter-se-ia na LDO, que, como todos sabem, estabelece as metas e prioridades da administração pública, orientando a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA).

            Em razão desse fato, foi expedido ofício ao Poder Legislativo do DF (Câmara Legislativa do DF), na esperança de que a questão fosse resolvida, sem a edição de lei com o alegado vício.

            Nada obstante, a CLDF aprovou a LEI Nº 5.695 DE 03 DE AGOSTO DE 2016, trazendo o artigo questionado, assim:

Art. 51. O disposto no art. 18, §1º, da LRF, aplica-se para fins de cálculo do limite da despesa total com pessoal.

  • Não se consideram como substituição de servidores e empregados públicos, para efeito do caput os contratos de terceirização relativos à execução indireta de atividades que, simultaneamente:

I – sejam acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade;

II – atenda a pelo menos uma das seguintes situações:

  1. a) não se refiram a categorias funcionais abrangidas por plano de cargos do quadro de pessoal do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário, ou
  2. b) se refiram a cargo ou categoria extinta, total ou parcialmente,
  3. c) tenha sua desnecessidade declarada por meio de ato administrativo.
  • Não se consideram como terceirização de mão de obra, para efeito do caput deste artigo, as despesas contratadas mediante participação complementar da iniciativa privada na prestação dos serviços de saúde pública, na forma da Lei Federal nº 8.080, de 1990.

            Semelhante dispositivo também constou na LDO para 2016, Lei 5514/15:

  • 2º Não se consideram como terceirização de mão de obra, para efeito do caput deste artigo, as despesas contratadas mediante participação complementar da iniciativa privada na prestação dos serviços de saúde pública, na forma da Lei federal nº 8.080, de 1990.

             O ponto fulcral da discussão refere-se à real intenção do Governo do Distrito Federal de por à salvo dos limites com gasto de pessoal, principalmente, os contratos de gestão e outros, inclusive em saúde, que visam substituir mão de obra. O tema da terceirização, nesse caso, tangencia, ainda, o arrombamento do princípio do equilíbrio fiscal.

            Claramente, pois, o DF estaria tentando dispor, por meio de lei local, a respeito de matéria que não lhe compete, a teor da disciplinam os artigos 163, I e 169, caput da Constituição Federal [1], verbis:

Art. 163. Lei complementar disporá sobre:

 I – finanças públicas

(…)

Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar. (Redação dada pela pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(…)

            Em complemento, vale mencionar o que determina a Constituição Federal, em matéria de competência concorrente:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

 I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

II – orçamento;

(…)

  • 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
  • 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
  • 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
  • A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

            Resta claro, assim, que compete à União dispor sobre normas gerais de Direito Financeiro, além do que é a norma complementar federal que deve dispor sobre os limites de despesas com gastos de pessoal, na Administração Pública.

            Nesse sentido, o STF pacificou que o artigo 18, parágrafo 1º “ visa a evitar que a terceirização de mão-de-obra venha a ser utilizada com o fim de ladear o limite de gasto com pessoal. Tem, ainda, o mérito de erguer um dique à contratação indiscriminada de prestadores de serviço, valorizando o servidor público e o concurso” (ADI 2238-5).

            Vejamos o que dispõe o diploma legal em referência:

Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.

  • 1o Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “Outras Despesas de Pessoal“.

            É inequívoco que a responsabilidade fiscal é um dever de todos os entes federados, sendo o limite às despesas com pessoal plenamente constitucional e a expressão máxima desse dever. Fosse diferente, todos os entes da federação estariam livres para escrever como quisessem a vedação em tela, tornando, assim, o princípio da responsabilidade fiscal verdadeira letra morta, ultrajado ao sabor de realidades regionais.

            De fato, o DF, por meio da lei vergastada, nada mais fez do que afrontar a competência da União, excepcionando dos limites das despesas com pessoal aquelas outras de terceirização e a prestação de serviços públicos de saúde complementar (campo em que se inserem terceirizações diversas, contratos de gestão, termos de parceria, etc), adentrando, de mesmo modo, em matéria que não é de sua competência, para dispor sobre a Lei Orgânica do SUS, que é, por igual, uma lei de iniciativa da União.

            Assim, “Não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que os Estados ou o Distrito Federal fazem é transgredir lei federal já existente. (…) Na falta completa da lei, com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. Se a União vier a editar a norma geral faltante, fica suspensa a eficácia da lei estadual, no que contrariar o alvitre federal. Opera-se, então, um bloqueio de competência, uma vez que o Estado não mais poderá legislar sobre normas gerais, como lhe era dado até ali. Caberá ao Estado, depois disso, minudenciar a legislação expedida pelo Congresso Nacional” (MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012. Págs. 885/886).

            Como se vê, não se está diante de ofensa indireta à Constituição Federal ou tampouco de adentrar primeiro no campo da ilegalidade, mas de verdadeiro confronto de competências, definidas na Lei Maior. Assim, repita-se, o diploma do DF invadiu a matéria que é sujeita à legislação complementar de iniciativa federal, para vigorar em todo o território nacional.

            Pois bem, em razão desses fatos, iniciou-se verdadeira cruzada entre todos os representantes do MP, no DF, contrários à inconstitucionalidade promovida com a edição do normativo transcrito.

            Coube, então, ao Ministério Público do Trabalho, Ministério Público do DF e Territórios e MP de Contas do DF subscrever duas representações, uma, à Procuradoria-Geral da República, e outra, à Procuradoria-Geral de Justiça, a fim de ver questionada a constitucionalidade da LDO para o próximo exercício, na Capital. De conseguinte, tivemos, não uma, mas duas ADIs, ajuizadas.

            Após essa reação legítima e constitucional de três dos quatro ramos do MPU, no DF, e do MPC/DF, a CLDF voltou a se reunir, mas, agora, para votar nova Lei (no 5718/16), revogando o parágrafo 2º antes referido, e, em sentido diametralmente oposto, passando a prever o seguinte dispositivo:

  • 6° Serão computadas como “Outras Despesas de Pessoal” os valores repassados para organizações da sociedade civil, relativos à contratação de mão-de-obra por tais entidades para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos em mútua cooperação com o Poder Público.

            Na sequência, o Governador DF manteve a revogação do parágrafo 2º questionado, que fora objeto de insurgência do MP, no DF, vetando, tão somente, o último dispositivo citado (o parágrafo 6° acima transcrito).

            Com esse bom exemplo, espera o CNPGC haver demonstrado como é importante a atuação estratégica, tempestiva e parceria entre todos os ramos do Ministério Público.

            Nessa atuação, tenham o MP de Contas brasileiro, como aliado, em defesa da probidade, das leis e da Constituição em nosso país.

[1] Vide, também, artigo 169, parágrafos 3º, 4º e 7º:

  • 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
  • 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
  • Lei federal disporá sobre as normas gerais a serem obedecidas na efetivação do disposto no § 4º[1]. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)